sábado, setembro 29, 2012


Entre a Esperança e a Vitória

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Dois anos após demolição de beco e inauguração do Condomínio Vitória, 
seus moradores renovam suas casas, suas lutas e sua relação com a chuva.


Nuvens pesadas e cinzentas se aproximam dos telhados do Condomínio Vitória, no Rosele, bairro da cidade de Araçatuba. "Parece que vai chover", comenta a moradora Cícera Maria dos Santos em um tom despreocupado. Sua fala é entrecortada pelo vozerio de crianças que atravessam a rua com brinquedos a tiracolo. Há dois anos, as famílias que hoje habitam o conjunto de imóveis ocupavam barracos no Beco da Esperança, localizado em uma APP (Área de Preservação Permanente). E quando a chuva ameaçava chegar, a reação automática dos adultos era colocar sobre móveis mais altos seus pertences e seus filhos pequenos para salvá-los, respectivamente, do estrago e do afogamento. A enchente era uma certeza, o prejuízo outra.

Um pouco mais de dois anos e dois meses separam essas duas formas de se relacionar com a chuva. As antigas habitações na rua Santo André, a cerca de 1,2km de distância, foram demolidas na manhã de 11 de março de 2010. Na da mesma data, 38 famílias receberam da Prefeitura as chaves de suas novas casas. Cícera e os outros moradores têm consciência de que residir em moradias próprias, longe do risco de alagamento, não é um presente filantrópico. Sua realidade atual é resultado de sua organização e de décadas de reivindicações, um capítulo de uma história iniciada com a fundação do Beco da Esperança por Dona Cleusa Maria dos Santos, mãe de Cícera, e ainda não concluída.





 Foi em 1979 que a fundadora descobriu uma área verde, na época abandonada pela prefeitura. Lá, sozinha capinou um terreno onde construiu seu barraco. Ficava em meio ao mato e aos insetos. Dois anos mais tardes, surge Cícera. Segundo ela carregava seus poucos pertences e sua fé para que juntas pudessem enfrentar as adversidades.

PRIMEIROS MORADORES

Em 1990, os primeiros vizinhos de beco começaram a aparecer. Todos eles originados de famílias desabrigadas, a maioria despejadas de casas de aluguel após perder o emprego. Com avanço do tempo, contabilizaram 49 núcleos familiares, número posteriormente reduzido para 38. Cada uma delas edificou sua própria moradia com os materiais que dispunham: tábuas, telhas, madeira e umas poucas de tijolos.

No ano de 2010 (período anterior à sua saída do Beco) faziam parte do total de 200 famílias araçatubenses com casas construídas em APPs, pontos com risco de serem tomados pelos mananciais durante a chuva.
Ao sair para trabalhar e notar o céu nublado, os moradores tinham a noção do que perderiam bens naquele dia de aguaceiro. Já quando as gotas começavam a cair e eles estavam em casa, colocavam seus pertences e suas crianças nos lugares mais altos do casebre. A razão da inundação era que logo na entrada do terreno, bem perto da casa da Cícera, havia uma vala de escoamento, local onde o líquido acumulava até transbordar.
“Quando a água vinha, entrava e varria tudo de uma vez, não dava tempo de fazer nada, só erguer as crianças”, relembra.

Dona Rosemar, conhecida como Rose, uma das moradoras mais antigas do beco, mudou-se para o local em março de 1995. Um dos moradores cedeu um cômodo de sua casa para ela, o marido e os cinco filhos. “Conheci um senhor que agora nem lembro o nome dele mais, acho que era Ceará, que deu um cômodo para eu morar. E lá eu fiquei até o fim, 17 anos. Não tinha banheiro, não tinha água, não tinha luz e não tinha nada. Era eu, meu marido e os cinco filhos em um só cômodo.”

ÁGUA CONTAMINADA
As famílias tomavam banho, escovavam os dentes e bebiam água não tratada, retirada de um poço. Em tempos comuns, os moradores do beco a consideravam boa para o consumo, mas nos dias de temporal, a enxurrada penetrava nos banheiros, enchia as latrinas e arrastava seu conteúdo pra dentro do reservatório. “Minha mãe pegava um pano branquinho, porque minha mãe era muito caprichosa, colocava o pano branco na boca do pote e coava a água para a gente beber”, relata Cícera, rindo da situação.

Sete dias foi o recorde de tempo que os residentes do beco chegaram a passar com as casas alagadas, enquanto móveis, geladeiras, fogões, alimentos e documentos eram engolidos pela chuva. Como não tinham para onde ir, eles esperavam ali mesmo o solo secar, para voltar à normalidade. “Em dias ensolarados, eu colocava o colchão no sol, lavava as roupas tudo de novo, e ia atrás de assistente social pedindo cesta básica, tentando conseguir papel para tirar todos os documentos de novo”, explica Rose.

Por contaminação da água, as crianças tinham feridas abertas em todo o corpo. Sua aparência e a dificuldade de manter as roupas limpas na época de alagamento resultavam em sua exclusão das comemorações estudantis. Rose recorda que isso não acontecia só com sua família. “Nas festas da escola, ia todo mundo bem arrumadinho, não deixavam nossos filhos participarem”.

Sapos, insetos e até animais peçonhentos como cobras eram trazidos para dentro das casas. A dengue também afetava a área. Quando dona Rose contraiu a doença pela sexta vez, pensou que ia morrer.

Num ar de descontraído, as duas moradoras revivem em mente algumas das brincadeiras que faziam em meio às dificuldades. “Tinha um barco velho, você lembra?”, (pergunta de Cícera direcionada a Rose), “A gente botava esses meninos dentro do barco, e nós brincávamos dentro do barco. Nossa vida era essa, porque não tinha nada do bom. Não tinha roupa para a gente vestir, a casa cheia de água, então nós entrávamos no barco e ficávamos lá dentro (gargalhada). Nós tirávamos uma alegria da tristeza”.

Foi então que conheceram o líder de bairro Edson Lopes, que se sensibilizou com a vida que levavam os moradores e decidiu ir atrás das autoridades para ajudá-los, juntamente com a Cícera.

Moradores conseguem terreno para construir casas

Lopes funcionou como ponte entre a família da fundadora do Beco da Esperança e o poder público. Presidente da Sociedade Amigos dos Bairros TV, Primavera e São Sebastião, ele divulgou entre a mídia local a situação em que Cleusa, Cícera, Rosemar e os demais ocupantes da área verde viviam.

Por suas cobranças junto às autoridades do município, assistentes sociais verificaram as condições das moradias. Organizados junto ao líder comunitário, os habitantes do beco tiveram contato com o então prefeito de Araçatuba, Jorge Maluly Netto. Os primeiros efeitos concretos de suas reivindicações vieram no dia 13 de abril de 2002: a inauguração de ligações de água e esgoto na região do beco pelo Daea (Departamento de Água e Esgoto de Araçatuba). Foram construídos 300 metros lineares de redes, uma obra que custou R$ 15 mil à Prefeitura.
No mesmo ano, Lopes morreu, seguido por dona Cleusa em 2003. “Ela faleceu em 9 de maio, perto do dia das mães. Eu me afundei, mas lembrava das palavras dela pedindo que não deixasse aqueles sonhos morrerem junto com ela”, conta Cícera. A filha da fundadora, apoiada por seus vizinhos, deu continuidade às cobranças da comunidade. A repercussão disso foi a aquisição da Prefeitura um terreno para receber um conjunto habitacional. Foi o primeiro passo de um projeto orçado em R$ 652 mil. Em julho de 2008, os moradores do beco reunidos em mutirão deram início às obras de construção na área doada.
No grupo predominava a presença feminina. “A primeira coisa que nós fizemos aqui foi carpir o terreno. A segunda coisa foi planar a terra. Fazer radier e depois a parede. Só dava mulher aqui. Ainda hoje eu tenho marca do radier, seu voltou e me rasgou tudinho”, detalha Rosemar, ao mesmo tempo em que expõe uma cicatriz rosada no antebraço, com uma pontada de orgulho na fala.
ENTREGA DO CONDOMÌNIO
Concluído com a entrega das chaves no dia 11 de março de 2010, o projeto envolveu três administrações municipais. Maluly teve seu mandato cassado, foi substituído por sua vice Marilene Magri a quem Cido Sério sucedeu. O último prolongou as obras, contratando a ENGESCAV Construtora para auxiliar o mutirão em sua execução. Além da edificação de 38 residências, o condomínio contou a instalação de aquecedores solares doados pela indústria Transsen e de lâmpadas econômicas nos postes e nos cômodos das casas, e o planejamento de paisagismo.
Até a conclusão, outras empresas o órgãos ofereceram parceria à iniciativa: CPFL Energia, Vega Engenharia, JN Construtora, Locatelli Paisagismo, UniToledo (Centro Universitário Toledo, UNIP (Universidade Paulista), AES Tietê, Fernando Rahal, USP (Universidade de São Paulo). Pintadas em diferentes tons beges alaranjados, as casas ocupam 43,18 metros quadrados cada e possuem dois quartos, sala, cozinha e banheiro.
“Falaram assim, a chave está na mão de vocês, agora lavem a casa e mudem. Nem lavei a casa, já vim com a mudança”, revela Rosemar. Para manter a posse, os novos moradores são impedidos de realizar atividades comerciais no Condomínio e é proibida a venda dos imóveis.
Cícera passou a noite da entrega do conjunto em um hospital. Sua pressão se elevou com a emoção. No mesmo dia em que as pessoas que até aquele momento moravam no Beco da Esperança se instalaram no Condomínio Vitória, suas antigas habitações foram demolidas. O primeiro barraco a ser demolido foi o de Renata Anderson da Silva. Outros 37 caíram. Em seu lugar a Prefeitura plantou árvores.
8,8 mil metros quadrados em processo de reforma 

Grama e coqueiros foram trocados por cimento e tijolos na maior parte das fachadas. Dois anos após sua fixação, os portões do Condomínio abrem para uma área de 8,8 mil metros quadrados em processo de reforma. Apoiados em um muro recém-construído, os montes de areia sinalizam a continuidade da reestruturação empreendida pelos próprios moradores. Erguidas para proporcionar uma maior privacidade aos habitantes, paredes ainda sem pintura contornam algumas das casas. Uma das residências ostenta um portão corrediço e outra ainda tem na nova porta uma demonstração de renovação.

Localizada no bloco B, a casa de Vitalino da Silva Gomes se destaca pela mão de tinta azul clara (cor escolhida porque ficava bonita nas casas da cidade), tão distinta das nuances bege e salmão predominantes no condomínio. Uma pintura com bichos da fauna pantaneira, feita pelo amigo Paul César, torna ainda mais único seu lar. “No beco, não tinha como personalizar o barraco em que morava", compara. O exterior da casa que ocupa sozinho é também um exemplo de asseio.  "Como dizia minha mãe, não importa a cor da roupa, mas sim se está limpinha”.




Gomes é proprietário de uma das poucas varandas que mantêm o gramado, os canteiros e o pé de coco. "Depois de um tempo, muito de nós tirou os coqueiros e cimentamos as entradas. Quem passa a vida toda no meio do barro não quer saber de terra", justifica Cícera. O interior de boa parte das casas teve cômodos azulejados, ganhou forro e pintura.
No outro lado, com a demolição dos barracos, o cenário do antigo Beco foi desativado para habitação e reflorestado pela Prefeitura.

CÍCERA FAZ UM CENSO INFORMAL

As mudanças nesse intervalo de tempo atingiram também o campo demográfico. Cícera caminha pela via em formato de "U" que divide o conjunto habitacional e com os olhos fechados faz um censo informal. Ao apontar para cada casa, lembra o número de seus habitantes. Contabiliza 137 pessoas. Entre essas, sete são crianças nascidas após a mudança para o Rosele. Dona de um rosto rechonchudo emoldurado por cachos dourados, Ashley Emanuele Alves Fernandes, neta de Rosemar, foi o primeiro bebê do Condomínio. Em abril, completou dois aninhos.

Em contrapartida, Claudete Maria dos Santos, irmã de Cícera, faleceu há quatro meses, deixando vazio um dos imóveis. Entre os adultos, poucos (seis ou cinco, segundo Cícera) estão desempregados. Alguns, como Rose, partem de manhã para a zona rural, onde trabalham em roças. Há quem trabalhe no Seasa, no shopping Center de Araçatuba, no Daea, na fábrica da Nestlé, outros são lixeiros.  

Por esse motivo, eles se alternam como ouvintes nas palestras mensais realizadas à tarde no condomínio e partilham com os ausentes o conhecimento adquirido sobre alimentação, saúde entre outros temas. Na maior parte, os moradores são familiares. Nove das casas são ocupadas por parentes de Rosemar. Cícera é vizinha dos próprios filhos.

NOVA VIDA, NOVAS LUTAS
Assim como o ciclo da vida, suas lutas são contínuas. A conquista mais recente foi o compromisso da administração pública em asfaltar as ruas dos arredores. Após a entrega da casa, os moradores reivindicaram a diminuição das contas de água. “Nós fizemos protestos, fizemos abaixo-assinado, íamos quase todo dia  ao Daea, aí conseguimos. Pagava 60, 50 reais de água, hoje pago 10. A gente tem que ser insistente, tudo que conseguimos foi por luta”, comemora Rosemar.

As 38 casas e a tranquilidade de seus moradores agora diante da chova comprovam suas palavras. “Aqui nós temos sossego, a gente não anda no barro. Está chovendo? Graças a Deus! A gente está sossegado aqui dormindo,” conta o aposentado Balbino Ferreira dos Santos. 


Por Rafaela Tavares, Guilherme Melo e Vanessa Canata
(Texto feito para a aula de Técnicas de Redação - Jornalismo Informativo)

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